As fortes chuvas ocorridas no litoral norte do estado de São Paulo durante o final de semana de Carnaval no Brasil deixaram rastros de destruição que ainda não foram completamente mensurados: mortes, pessoas desaparecidas, casas destruídas, famílias desfeitas e sonhos quebrados em pedaços e enterrados em grandes porções de lama derramadas em função de amplos deslizamentos das encostas de serra.
Enquanto ainda se mensuram os impactos materiais e imateriais desta tragédia e se verificam inúmeras ações de solidariedade nas buscas, no envio de mantimentos, vestimentas e recursos financeiros para a reconstrução do que fora destruído pelas chuvas, uma reflexão não pode deixar de pairar em nossas mentes: até quando veremos tragédias anunciadas como esta e usaremos nossos recursos para reconstruir algo novo a partir dos escombros em vez de investirmos o que pudermos na prevenção destes graves acontecimentos?

Sim, é possível afirmar que os estragos ocasionados pelas recentes tempestades têm relação direta com o aquecimento global, com as mudanças climáticas e a com ocupação desmesurada de terrenos desmatados que não poderiam ser alterados pela força humana. A natureza retribui aos indivíduos com a mesma intensidade que recebe o tratamento que desconsidera as gerações futuras. A perspectiva de sustentabilidade, que preconiza a necessidade de agirmos hoje para garantirmos um amanhã saudável, demonstra que não agimos quando devíamos e, pior, continuamos dando as costas para o compromisso de proteção ambiental e social que resultariam em cenários infinitamente menos trágicos que os vistos.

Há quem diga que a intensa comoção gerada pelas tragédias no litoral norte de São Paulo só tenha relação com as famílias de classe alta que frequentam aquele local. Independentemente do poder aquisitivo e da pujança econômico-financeira da região ou de seus frequentadores, fica evidente que as consequências oriundas das mudanças climáticas não aceitarão desaforo: não há escolha de classe social, raça, gênero, orientação sexual ou identidade de gênero. A sustentabilidade é para todos(as) – e também as consequências de uma ausência de olhar cuidadoso para a natureza em todas as suas facetas.

Enquanto reconstruímos a região, devemos rever nossas estratégias: devemos repensar a presença de um polo químico altamente poluente tão próximo ao litoral paulista; devemos repensar os planos estatais de ocupação (legal e ilegal); devemos cuidar do oceano com o devido cuidado; e estas ações não se restringem às empresas ou ao Estado. Eu mesma estive no litoral norte paulista durante o Carnaval e pude ver a desídia de banhistas e frequentadores das praias para com o meio ambiente. Repito o que disse em artigo recente: a sustentabilidade começa com a sustentabilidade de nossas relações e de nossas ações individuais.

Que possamos compreender este triste evento como mais um chamado. Um convite a repensarmos nossa relação com o planeta, nossas atitudes como cidadãs e cidadãos, empresários(as) e governantes. Viver a partir de tragédias anunciadas e reconstruindo escombros demanda muito mais energia de todos(as) nós do que criar novas estruturas protetivas e de cuidado para com nosso planeta.

 

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Ana Cláudia Ruy Cardia Atchabahian é advogada formada pela PUC-SP e mestre e doutora em Direito Internacional pela mesma instituição, com foco específico de pesquisa em Empresas e Direitos Humanos e ESG. Professora Universitária e membro da International Law Association - Ramo Brasileiro. Conselheira da Diretoria da Academia Latino-Americana de Direitos Humanos e Empresas e membro da Global Business and Human Rights Scholars Association. Consultora em ESG e Empresas e DH para empresas e órgãos públicos nacionais e internacionais.