Nas próximas semanas, voltaremos nossas atenções a um dos maiores espetáculos do esporte mundial: a Copa do Mundo de 2022, a ser sediada desta vez no Qatar.

Na ocasião, seleções de diversos países disputarão a tão sonhada taça – e nós mesmos, aqui no Brasil, esperamos superar o tão famigerado 7 a 1 e caminhar rumo ao hexa. 

Acontece que, neste universo, nem tudo são flores. Para que o tão esperado evento venha a ocorrer de maneira a maravilhar espectadores do mundo inteiro, foram necessárias muitas mortes, muita exploração e, principalmente, uma grande desconexão entre qualquer perspectiva de sustentabilidade por parte de todos os entes envolvidos em sua concretização. E é aí que a pauta ESG tem absoluta relação com este evento.

A FIFA, Federação Internacional de Futebol, ao conceder ao Qatar a possibilidade de ser o primeiro país do Oriente Médio a celebrar a Copa do Mundo, não trouxe com esta concessão qualquer espécie de requerimento para que a adaptação da infraestrutura daquele país seguisse critérios de sustentabilidade ambiental e proteção aos direitos dos trabalhadores (o que nos faz questionar também todas as violações aos direitos humanos e ao meio ambiente cometidas para viabilizar a realização dos eventos anteriores, como até mesmo a Copa do Mundo do Brasil, por exemplo). 

Temos, portanto, vindo de uma organização com natureza internacional, um primeiro passo que desconsidera a necessidade de um olhar mais atento à sustentabilidade em sentido amplo.

O governo do Qatar, por sua vez, precisou do auxílio de milhares de trabalhadoras e trabalhadores migrantes para adequar sua infraestrutura interna para a realização da Copa do Mundo. 

Foram contratadas pessoas principalmente do sudeste asiático e da África para a execução das obras dos estádios, estradas e metrôs, entre outros, bem como para a realização de serviços de estrutura hoteleira e serviços em geral. 

Ocorre que as leis internas daquele país eram pouco ou quase nada protetivas em relação às condições de vida dos trabalhadores migrantes, em especial em função do chamado “Sistema Kafala”, que determina que a contratação daqueles(as) trabalhadores(as) deve ser feita por uma espécie de sistema de patrocínio para a sua vinda, legalização no país e trabalho, feito especialmente por seus empregadores. O resultado? Situações calamitosas, que em alguns casos custaram até mesmo a vida de muitos(as) trabalhadores(as). 

Um imenso descompasso entre a proteção social que reveste o “S” de nossa famosa sigla e que chamou até mesmo a atenção da Organização Internacional do Trabalho para o problema. Veja aqui

Neste último caso, não se deve perder de vista que, para além da normativa nacional, que, como visto, era pouco ou quase nada protetiva dos(as) trabalhadores(as), as empresas que contrataram esta mão-de-obra também contribuíram diretamente para a violação dos preceitos de ESG hoje reconhecidos como essenciais para o mercado. 

Assim, nesta cadeia se percebe o descaso sob o ponto de vista internacional, doméstico e corporativo para com os pressupostos de proteção aos direitos humanos dos trabalhadores.

Não obstante nos últimos anos organizações da sociedade civil terem chamado a atenção para as condições degradantes dos trabalhadores para a concretização da Copa do Mundo no Qatar (com ricos trabalhos da Human Rights Watch e Amnesty International, que você pode conferir aqui e aqui, por exemplo) e o governo daquele país ter alterado algumas de suas normas na tentativa de trazer critérios mínimos de proteção aos trabalhadores migrantes, muitos são os abusos ainda não considerados. 

A título de exemplo, familiares de muitos(as) trabalhadores(as) que morreram no processo de construção da infraestrutura para o tão esperado espetáculo futebolístico não receberam nenhuma compensação, sobretudo em função de as empresas relatarem que as mortes foram ou “naturais” ou “por causas desconhecidas”, retirando qualquer vínculo com os acontecimentos em si. 

Ademais, ainda se verificam situações de confisco de passaportes (que podem até mesmo ser vistos sob a ótica do tráfico de pessoas, sério crime que configura violação aos direitos humanos e parte do conceito de escravidão moderna), proibição a qualquer forma de união ou associação por parte dos trabalhadores que sentiram prejudicados(as) ou mesmo desaparecimento de trabalhadores(as) que passaram a denunciar tais abusos de forma mais enérgica em mídias ocidentais.

E o que nós, como consumidores(as), podemos fazer? Apesar da ansiedade em acompanhar este espetáculo do futebol internacional, sobretudo após um período de isolamento social e de maior ânsia por eventos coletivos, não podemos nos afastar também da nossa responsabilidade para com as perspectivas de sustentabilidade. 

Assim, temos de conhecer tais violações a fim de não sermos coniventes com produtos e serviços que sejam advindos de graves violações aos direitos humanos e ao meio ambiente. 

O mesmo vale para a realização de investimentos em empresas que não se atentam às práticas ESG. A responsabilidade é coletiva, e precisamos também fazer a nossa parte.

Por fim, as empresas patrocinadoras deste evento precisam ter consciência dos acontecimentos para não se transformarem partícipes neste amplo rol de violações que marca não apenas a ocorrência da Copa do Mundo de 2022, mas grandes eventos esportivos de natureza mundial. 

As empresas que hoje estampam suas marcas como apoiadoras destas iniciativas precisam se engajar cada vez mais na busca por padrões de sustentabilidade que envolvam a proteção à dignidade humana dos trabalhadores e ao meio ambiente e, indo além nas práticas de sustentabilidade e ESG, contribuindo de alguma maneira para garantir que os desmandos de determinados governos e outros atores privados sejam corrigidos a contento (ainda que de forma tímida, vale a leitura da ação da Adidas neste sentido).

Esta deve ser a principal preocupação não somente neste, mas especialmente nos próximos grandes eventos a serem realizados nos mais diferentes países – e apoiados pelas empresas que conhecemos – sobretudo para que não sejamos cúmplices de graves violações aos direitos humanos e possamos levantar também a taça da sustentabilidade.

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Ana Cláudia Ruy Cardia Atchabahian é advogada formada pela PUC-SP e mestre e doutora em Direito Internacional pela mesma instituição, com foco específico de pesquisa em Empresas e Direitos Humanos e ESG. Professora Universitária e membro da International Law Association - Ramo Brasileiro. Conselheira da Diretoria da Academia Latino-Americana de Direitos Humanos e Empresas e membro da Global Business and Human Rights Scholars Association. Consultora em ESG e Empresas e DH para empresas e órgãos públicos nacionais e internacionais.