Chegou a hora de modernizar a função social da empresa

Apesar de em voga desde o ano de 2015, a discussão sobre a necessidade de as empresas adequarem suas práticas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) ganhou força com o início da nova década. Os dezessete Objetivos e suas cento e sessenta e nove metas, que compõem a chamada “Agenda 2030”1, são a mais recente iniciativa de Estados, corporações e demais membros da sociedade civil de buscar soluções para os principais problemas relacionados à sustentabilidade no planeta.

Diferentemente dos “Objetivos do Milênio”2, adotados nos anos 2000, a definição dos ODS e das formas pelas quais os sujeitos e atores internacionais poderiam contribuir para seu alcance contou também com a participação ativa do corpo empresarial que, não custa lembrar, perfaz a maior parte do capital mundial, sobretudo se considerados os Produtos Internos Brutos dos Estados em contraposição ao capital corporativo.

Resta claro, portanto, que as discussões sobre sustentabilidade e proteção aos Direitos Humanos não mais podem ficar apenas no vocabulário das competências e atribuições Estatais.

Não obstante tal problemática – a necessidade de as empresas também se engajarem na proteção aos direitos humanos – ser discutida desde a década de 70 do século passado, os ODS certamente representam um marco na participação corporativa em prol da sustentabilidade.

Por sustentabilidade hoje, compreende-se a realização de práticas simultâneas e equilibradas que contribuam para a erradicação da pobreza, a implementação de sistemas de saúde e de educação de qualidade, a redução das desigualdades e o incremento do crescimento econômico com o menor impacto ao meio ambiente, neste incluídos oceanos e florestas.

Claro, portanto, que tais iniciativas devem ser perseguidas por toda a humanidade e, por que não, por empresas. Sendo assim, sua incorporação no ambiente empresarial deve não apenas perpassar os departamentos de marketing (a exemplo de empresas que praticam o chamado greenwashing3), mas sim se compor como objetivo central da empresa, juntamente com o de obtenção de lucro.

Aprofundando o raciocínio, a sustentabilidade deve compor o valor central das sociedades (value-based drive). Seu alcance deve ir do relacionamento dos Conselhos de Administração e Boards com os(as) funcionários(as) até o controle das eventuais cadeias de fornecimento, independentemente do ramo empresarial a que os ODS se destinam.

A busca pelo alcance direto ou indireto das empresas das metas que compõem cada Objetivo deve ser pensada conjuntamente com sua principal estratégia administrativa.

É fato que empresas transnacionais e grandes corporações brasileiras já têm voltado suas atenções à referida temática. São crescentes os exemplos de empresas dos mais variados ramos produtivos que têm buscado incluir a observância aos ODS em suas atividades cotidianas4.

Contudo, é possível mapear lacunas na interpretação e aplicação dos Objetivos por parte das corporações ora aderentes, bem como encontrar saídas para os empreendedores de pequeno e médio porte adotarem práticas que aumentem sua capacidade competitiva, sobretudo quando sua função for a de fornecer insumos para os grandes conglomerados.

Não obstante o conceito de função social da empresa no Direito Brasileiro reunir o requisito de sustentabilidade5, sabe-se que este é por vezes negligenciado não apenas por empresários(as), mas também pelo próprio Estado. Independentemente do papel estatal em referida temática, a adoção dos ODS por corporações brasileiras deve perpassar também o(a) pequeno(a) e médio(a) empresário(a), que pode, a exemplo dos grandes conglomerados, buscar alternativas em sua própria atividade produtiva para, implementando pequenas mudanças, reverter a lógica meramente exploratória do planeta.

Uma análise pormenorizada da lógica produtiva de cada ramo empresarial deve ser feita, levando-se em consideração o pressuposto de que todas as iniciativas implementadas se consubstanciarão em investimentos futuros para a corporação e, principalmente, para a sociedade. Uma versão modernizada da ideia inicial de função social da empresa, também mais alinhada aos anseios globais.

Empresas são criadas por pessoas e prestam serviços, por meio de indivíduos, para outros seres humanos. Portanto, ignorar o fator humano e seu entrosamento com o meio ambiente não é mais uma alternativa viável. Este é um caminho sem volta, que se perfaz em toda a cadeia produtiva e consumidora. O ideal de consumo consciente não mais abrange apenas o consumidor final. É questão de tempo, portanto, para vermos a marginalização de empresas de pequeno e médio porte que não se adequarem aos novos padrões e às práticas estabelecidos por grandes corporações a partir dos ODS – mesmo que, no fim, o impacto na lucratividade seja a única maneira de realmente constranger as empresas que não adotarem critérios de sustentabilidade ao seu próprio arbítrio.

Para que isso não aconteça, a lição é clara: conhecimento, aprendizado a partir das práticas existentes e foco na supressão das lacunas já verificadas. A diferenciação em relação aos concorrentes certamente será uma consequência saudável – e, como já empiricamente verificado, rentável – de implementar práticas de sustentabilidade.

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1 UNITED NATIONS. Sustainable Development Goals. Disponível em:

<https://sustainabledevelopment.un.org/?menu=1300>. Acesso em: 20 fev. 2020.

2 UNITED NATIONS. Millennium Development Goals and Beyond 2015. Disponível em:

<https://www.un.org/millenniumgoals/>. Acesso em: 20 fev. 2020.

3 O conceito de greenwashing pode ser resumido a partir de excelente pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o IDEC: “(…) expressão que significa “maquiagem verde” ou “lavagem verde”. Nesses casos, as marcas criam uma falsa aparência de sustentabilidade, sem necessariamente aplicá-la na prática. Em geral, a estratégia é utilizar termos vagos e sem embasamento, que levam o consumidor a acreditar que ao comprar um produto “ecológico” está contribuindo para a sustentabilidade ambiental e animal”. INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Mentira Verde. Disponível em:

<https://idec.org.br/greenwashing>. Acesso em: 20 fev. 2020.

4 Destacam-se, nesse ponto, as empresas BlackRock, com a publicação da carta anual de seu CEO informando que a empresa dará preferência a investimentos que tenham a sustentabilidade como valor central, as iniciativas do banco Goldman Sachs em buscar Boards mais diversos, e os esforços dos bancos Itaú e Santander no Brasil em implementar práticas de sustentabilidade e governança. No ramo alimentício, merece menção a transnacional Nestlé, com sua observância à cadeia produtiva de produção de chocolate.

5 COELHO, Fábio Ulhoa. Princípios do direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 37.

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Ana Cláudia Ruy Cardia Atchabahian é advogada formada pela PUC-SP e mestre e doutora em Direito Internacional pela mesma instituição, com foco específico de pesquisa em Empresas e Direitos Humanos e ESG. Professora Universitária e membro da International Law Association - Ramo Brasileiro. Conselheira da Diretoria da Academia Latino-Americana de Direitos Humanos e Empresas e membro da Global Business and Human Rights Scholars Association. Consultora em ESG e Empresas e DH para empresas e órgãos públicos nacionais e internacionais.